quinta-feira, 15 de agosto de 2013

DOIS PARES DE OLHOS



Por Ailton Augusto

I. A contrariada

Olhou pela janela: a lua nascia de um amarelo forte, que contrastava com o tom avermelhado do vinho na taça. Aliás, vinho já quente, pois a escolha de um vestido para a festa estava tomando mais tempo do que gostaria. Mais que isso: ela tinha uma excessiva dificuldade, devida em boa parte ao fato de que ir àquela festa com seu namorado era uma obrigação.
Tratava-se da festa de aniversário de uma criança, filha de um colega de trabalho dele. E ela sabia como se sentiria ao ter de sentar na mesa com gente desconhecida e obrigar-se a conversar sobre amenidades, comendo mais do que gostaria para manter a boca ocupada com algo mais que palavras vãs, trocadas para ocupar o tempo.
A noite, já entrada, se anunciava fria e ela optou por um vestido preto de corte simples, o qual seria encimado por uma echarpe igualmente preta. O tipo de evento talvez exigisse dela uma roupa mais alegre, de cores festivas. Contudo, ela optou pelo extremo oposto: iria de luto por sua noite perdida. Teria sido tão mais fácil inventar uma desculpa para não ir...

II. O inapto

Ele estava no ponto de ônibus quando recebeu a ligação convidando para a festa. Demorou um pouco para entender o convite, pois não se via tão íntimo do pai da criança, com quem havia estudado dez ou doze anos antes. Acrescente-se, a título de informação, que o rapaz em questão era totalmente inapto para o jogo de cena social e, em sua visão restrita, nenhuma afinidade justificava sua estadia naquele evento.
Apesar disso, decidiu ir. Reconhecia que a festa tinha, em si, muito poucos atrativos — apenas a possibilidade de rever duas ou três pessoas conhecidas com quem ele se encontrara de modo casual nos últimos anos, após a formatura de todos eles... Com um pouco de sorte, ele poderia aproveitar a ocasião para se reaproximar das pessoas, principalmente o anfitrião e, assim, voltar a desfrutar da sensação de ter um amigo. Ele, inapto e solitário.
Poder-se-ia dizer mais coisas a seu respeito, inclusive as inúmeras dificuldades que teve para escolher um presente para a criança pequena, as quais resolveu com a indelicadeza de colocar uma quantia de dinheiro em um envelope que seria entregue, com muitos rodeios, no dia da festa.

III. Dois pares de olhos

Antes que o leitor pergunte, o inapto e a contrariada não eram namorados. Eles sequer se conheciam. Na festa, por um acaso, terminaram sentando na mesma mesa.
Explica-se o acaso: como a casa de eventos era acanhada, optou-se por reduzir a quantidade de mesas para poder deixar mais espaço livre para a pista de dança. Com isso, o rapaz inapto, tímido como ele só, teve de pedir licença e sentar-se entre desconhecidos. Ele sentia-se um homem de sorte por não ter sido rejeitado naquela mesa onde (como veio a saber depois) havia médicos, advogados e outros “doutores”.
A conversa, como todos de algum modo esperavam, versou sobre amenidades. Contaram-se muitas histórias velhas envolvendo o dono da festa. Contadas a título de anedota, elas tinham também o objetivo de justificar, por parte de quem detinha a palavra, a presença naquela festa, junto dos demais convivas.
Em algum momento da noite deixaram as tábuas de frios e coisas afins em uma mesa na outra ponta do salão. Entretanto, ninguém se animava a ser o primeiro a buscar tais alimentos com medo de parecer esganado ou morto de fome. A moça contrariada, que, como se nota pela alcunha, não via razão de ser da sua presença na festa decidiu puxar a fila. Foi até a mesa e montou um pratinho.
Voltando à mesa, ela decidiu oferecer àquele rapaz encolhido parte da comida que tinha em seu prato. Com um sorriso ele aceitou e, como retribuição, ele roubou um doce da mesa do bolo e trouxe para ela, cujo nome ele nem se lembrava mais, apesar das apresentações do início da noite.
Os lábios dela, até então uma inexpressiva linha reta, fizeram leve curva ascendente no esboço de um sorriso de gratidão e, pareceu a ele, identificação. Identificação?... Os dois pares de olhos, o dela e o dele, originam olhares que se cruzaram durante a noite num diálogo mudo, mas sem segundas intenções. Cabe dizer ainda que, da parte do rapaz, que era um pouco mais novo que ela, qualquer relação seria complicada diante do fato de ele estar frente a uma jovem senhora já comprometida, muito ensimesmada e bastante indiferente a julgar pela contenção de seus gestos e palavras.
Eles apenas se entendiam no seu deslocamento, tão grande que nem sequer conseguiam largar a conversa amena com os outros para dedicarem-se a um diálogo que se fizesse paralelo e mais interessante para eles. Nesses dois pares de olhos dançava a mesma pergunta: que estamos fazendo aqui?

IV. Comentários de fim de noite

A moça saiu antes do fim da festa, arrastando seu namorado com tato suficiente para não soar grosseira a sua retirada quase à francesa. Desacompanhado por natureza e abandonado pela sua companheira de infortúnio descoberta ao acaso, o rapaz inapto só permaneceu até o fim da festa porque um antigo colega de estudos, que havia chegado atrasado e estava em outra mesa, ofereceu-lhe carona.
No trajeto de volta, ele e seu colega dedicaram-se aos comentários habituais sobre festas dessa natureza, além de tecerem algumas considerações a respeito deste ou daquele convidado. Dois pares de olhos se cruzam e o motorista pergunta: mas como você se virou naquela mesa? A moça do vestido preto, pelo que vi de longe, pareceu tão antipática e esquisita...
O inapto fazia tanta justiça ao apodo que terminou concordando com quem lhe dava carona. Criticou a moça com cujo deslocamento se irmanou. E o fez em busca de que tipo de apoio ou afirmação?

AILTON AUGUSTO é natural de Juiz de Fora/MG. Graduou-se em Letras pela UFJF, onde estudou com mais afinco as literaturas de língua portuguesa e língua espanhola. É escritor amador, com textos dispersos entre os blogs umeternobrainstorm.blogspot.com e verdadesprovisorias-jf.blogspot.com. Junto com outros dois amigos, atua como editor da Revista Encontro Literário (ISSN 2237-9401, revistaencontroliterario.blogspot.com).




Copyright 2013 (c) - Todos os direitos reservados ao autor. Esta obra é parte da coletânea 15 Contos+ Volume II, Helena Frenzel Ed. e está licenciada sob uma Licença Creative Commons 2.5 Brasil. Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito ao autor original. Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Caro(a) Leitor(a), lembramos-lhe que comentários são responsabilidade do(a) respectivo(a) comentarista e informamos que os mesmos serão respondidos no local de postagem. Adotamos esta política para melhor gerenciar informações. Grata pela compreensão, muito grata por seu comentário. Volte sempre, saudações!