quarta-feira, 14 de agosto de 2013

SE CALHAR O MAL ESTÁ NA CABEÇA



Por Victor Eustáquio

Havia uma espécie de neblina. Ou talvez névoa. Na verdade, qualquer coisa onírica a obscurecer-lhe a capacidade de olhar, e de ver, e de perceber o tino dos seus passos à medida que se dirigia para o púlpito, enorme, bem mais alto do que ele, lá ao fundo, no final do tapete vermelho que cobria aquela clareira aberta no meio da multidão, dividindo-a simetricamente, de um lado e do outro, gente sentada num sem-número de cadeiras enfileiradas na horizontal, que o seu caminho fazia-se na vertical, a direito, sempre em frente, em busca do lugar sagrado no qual estava prestes a discursar em público pela primeira vez na vida.
Sentia os braços retesados, tensos, demasiado vergados à rigidez ditada pelo peso de algo que afinal não podia ser assim tão pesado. Mas que doía. O fardo de uma responsabilidade imposta precocemente; a de comunicar e de saber comunicar perante tantas pessoas, com apenas seis anos de idade, o que havia rabiscado em duas folhas de papel que levava dobradas na mão esquerda, enquanto apertava com a direita uma bolsa preta de fecho, acolchoada, com um pequeno livro enfiado lá dentro. A Bíblia, os textos sagrados remetidos para uma vulgar cópia impressa em edição de bolso, ostensivamente protegida por aquele saquinho de pele.
Miguel gostava de imaginar que o seu livro era feito de folhas de palmeira cozidas em leite, escritas com instrumentos pontiagudos, como ainda hoje fazem no Nepal e no Tibete, tão povoado que estava o seu imaginário dessas errâncias remotas de que versavam as escrituras. Ou de madeira encerada, com as páginas costuradas, como faziam os Romanos, ainda antes dos rolos de papiro dos egípcios. Ou de páginas feitas com pele de carneiro, cabra ou ovelha, os célebres pergaminhos da antiga Grécia. Mas os escribas e copistas há muito que haviam desaparecido, não obstante aquele maço de folhas encadernadas, impressas em série, nos dias modernos, continuar a evocar o Apocalipse e os tempos do fim ou o fim dos tempos, que nisso não eram muito claros, os textos sagrados, bem entendido, pelo menos para ele, criança de fato e gravata feitos à medida, à falta de medidas para tão pouca carne, em altura e em largura, embora os pecados não se dessem por vencidos e tanto eram aplicáveis aos seis como aos sessenta, e a todas e quaisquer outras idades, desde que a fé fosse uma obrigação. Em consciência, aceite porque assim devia ser, ou à letra, quer dizer, obrigada.
E, contudo, era disso que Miguel ia falar. De outras eras, dos dias envelhecidos pelas pelejas da antiguidade, das vozes escolhidas para interpretar deixas celestiais, em época de escribas e copistas, entre hebreus e árabes, entre os semitas e os outros, persas e fenícios, até que as tribos se cristianizaram e o mundo se dividiu. Para localizar a união de poucos e a desunião de muitos.
Foi necessário baixar o microfone até ao limite do tripé metálico para que o rapaz lá chegasse, para se fazer ouvir e convencer-se de que podia fingir ser já um homem. Assim lho tinham feito crer em nome de Deus, que aos seis anos o privilégio era só para alguns, orar para uma congregação inteira com os olhos postos nele, que alegria e orgulho, de pequenino se torce o pepino, o futuro, esse, evidentemente que seria grandioso, mesmo terreno, até que o fim chegasse sob a forma de uma destruição maciça, qual dilúvio qual quê, bem pior do que Sodoma e Gomorra, e a todos levasse para o paraíso.
Quando ficou tudo a jeito e lhe deram sinais nesse sentido, a criança abriu o livro protegido pela pequena bolsa de pele que apertava com a mão direita e depositou-o em cima do tampo de acrílico do púlpito com as páginas abertas, separadas por uma fita vermelha. De seguida, desdobrou as folhas de papel que conheceram um destino idêntico, com as mãos a tremer, e olhou para a plateia de fiéis. Um quadro embaciado, distante de Miguel, porque continuava a haver aquela espécie de neblina que lhe turvava a vista. Tentou começar a ler, mas a voz não saiu. Ouvia-se apenas o som amplificado de uma respiração apressada, ainda que não muito audível na justa proporção da tão diminuta caixa torácica escondida pelo fato e a gravata. O rapaz tinha o cabelo curto, penteado severamente com a risca ao lado, e uma borbulha cheia de pus e encarniçada encostada à narina direita.
— A Terra não será destruída nem por fogo nem por qualquer outro meio — acabou Miguel por conseguir verbalizar, lentamente, com a voz insegura e quase imperceptível, a arrastar as palavras com um timbre fino, próprio da idade. — A Bíblia ensina que a Terra é o lar eterno da Humanidade.
A tribuna de madeira e o microfone, mesmo rebaixado até ao limite, tapavam o rapaz quase por completo, o que, em boa verdade, até lhe dava uma certa sensação de conforto no meio daquele reboliço de ansiedade e outras aflições de espírito.
— Depois de criar nosso planeta, Deus disse que ele era muito bom — prosseguiu Miguel, tão titubeante quanto monocórdico. — E Deus ainda pensa assim. Ele não vai destruir a Terra, mas promete que vai arr… arruna… arruinar os que a arru… arrrunaram e progê….protegê-la contra danos permanentes — acrescentou, a tropeçar nalgumas palavras.
A sala mantinha-se em silêncio, expectante, com alguns espectadores a dar sinais de aprovação através de um sorriso suave e cúmplice desenhado nos seus rostos.
Miguel agarrou na Bíblia e preparou-se para continuar a ler.
— João 2:17 — indicou, levando a que todos o seguissem com as suas respectivas cópias impressas em série, folhas de papel compostas por elementos fibrosos de origem vegetal, na prática celulose, sem quaisquer vestígios de pele de carneiro, cabra ou ovelha. — O Mundo está passando, e assim também o seu desejo, mas aquele que faz a vontade de Deus perna… nece para sempre — citou, concluindo a intervenção, a que se seguiu uma salva de palmas.
Uma ovação entusiástica feita de pé perante o regozijo do rapaz, também ele agora com um sorriso estampado na cara. Miguel arrumou as suas coisas e abandonou a tribuna, fazendo o mesmo caminho inversamente, com o pequeno livro acolchoado na mão direita e as folhas de papel na esquerda, a mão com que o Diabo come, mão impura e amaldiçoada, sendo o demo canhoto e um arauto obstinado dos rituais esquerdinos.
Foi com a mesma mão, a esquerda, claro está, que dois anos depois, Miguel, o arcanjo Miguel, escavou um pequeno buraco na terra, no lamaçal de um parque de diversões, com os joelhos no chão, debruçado sobre uma poça de água que reflectia os néones multicolores dos carrosséis. Tinha os dedos encardidos e os cabelos molhados. Os olhos castanhos brilhavam-lhe de excitação, à medida que da boca saía uma canção de embalar, cantada toscamente e fora de tom. Quando sentiu que estava tudo pronto, tirou um pequeno frasco de vidro do bolso do impermeável azul-escuro, que lhe aconchegava o peito, abriu a tampa e agarrou numa mosca. Com cuidado, para não lhe esmagar o corpo. O insecto não se mexia e se alguém pudesse vê-lo mais de perto repararia estupefacto que estava desasado. A criança depositou-o no buraco e ficou a observá-lo por momentos, inerte, naquela cova úmida e enlameada. De seguida, Miguel começou a empurrar o montículo de terra para o buraco, para cima da mosca, tapando-a, soterrando-a. No fim, tentou alisar com a mão direita, a pura, a que conservava ainda imaculada, até descobrir mais tarde a tormenta dos prazeres solitários, aquela superfície revolvida, primeiro com um movimento horizontal, depois com um vertical, como se fosse um sinal da cruz imaginário. Por fim, agarrou em dois fósforos, cruzou-os e atou-os com um bocado de cordel que tinha no bolso das calças. Quando terminou a tarefa, enterrou a pequena cruz na terra, mesmo por cima do sítio onde havia sepultado a mosca. E sorriu. Com os joelhos afundados no lodaçal e a cabeça à chuva. Um sorriso enigmático no qual se adivinhava tanto inocência como deslumbramento e malícia. À volta dele, brilhavam as luzes dos carrosséis e soavam e os gritos inebriados das crianças, com as suas mentes inquietas enlevadas por aquela festa estridente ao ritmo de uma cacofonia musical vinda dos quatro cantos do parque, o que não era rigorosamente verdade pois a Terra não se apresenta na forma quadrilátera nem é plana ou chata, venham lá as desavenças gravitacionais e as cisões eclesiásticas, que o adultério aristotélico e a abolição geocêntrica já não faziam parte daquele tempo.
Foi uma das últimas recordações que levara da cidade, quer dizer, da periferia da cidade e do bairro de lata em que havia vivido para aquele lugarejo perdido a norte da capital, onde Miguel prosseguiu os estudos pela televisão, em tempos de telescola, sob a condução de um padre, coisa estranha para os pais, que eram de outros credos.
Quando decidiu abandonar a fé, quer dizer, fazer tudo para ser expulso, o ancião dissera-lhe que assim não podia ser ou parava de se masturbar ou não entrava no reino dos céus e já agora no que pensas quando o fazes, como assim irmão, com quem imaginas estar, ah isso é mais complicado irmão, mas de Deus nada deves esconder, está bem, então quem é, a sua filha, porra a minha filha, sim, de treze anos, qual é o problema tenho quinze seria pior se imaginasse estar com uma mulher mais velha a sua mulher por exemplo irmão, cala-te seu pecador pareces um fornicador endiabrado já fornicaste, fornicar não mas até gostava e com a sua filha, e tu a dares-lhe com ela, se calhar o irmão preferia que fosse a sua mulher pelo menos não penso em homens, cala-te lá nem homens nem a minha mulher nem a minha filha que a rapariga é de bons costumes e tu jamais lhe porás as mãos ou qualquer outra coisa que daqui terás de sair banido para sempre pois arrependimento não parece ser dádiva tua pelo que não há perdão nem emenda.
E não houve.
Mas a mãe tentou suicidar-se. Naquele lugarejo perdido a trocar as coordenadas do epicentro da existência. Que vergonha e aflição, o único filho condenado para a eternidade, mais valia morrer, mesmo correndo o risco de não chegar a ver o fim do mundo, e lá foi parar ao hospital para uma lavagem ao estômago, encardido de químicos, a segunda tentativa ainda tardaria algum tempo, mas dessa vez não havia sido bem por querer, acontecera-lhe andar com o colesterol fora da linha, e perdeu os sentidos, ao abrir a porta de casa ao filho e cair-lhe nos braços, já ele pensava em ataque cardíaco, ou em qualquer outra patologia, se calhar o mal estava na cabeça.
E estava mesmo.
À terceira, a mãe morreu. Até porque é a conta que Deus fez. Não por suicídio, mas por doença. Um acidente cerebral fulminante. Afinal, a Bíblia estava enganada, como percebeu Miguel nove anos depois de fingir que já era homem ao subir pela primeira vez àquela tribuna para falar de outras eras; definitivamente a Terra não é o lar eterno da Humanidade. Mas numa coisa os textos sagrados tinham razão, embora não estivesse explícito naquele livro protegido pela pequena bolsa de pele: Deus não vai destruir a Terra; apenas destrói todos os que criou à sua imagem.

VICTOR EUSTÁQUIO é docente do ensino superior nas áreas da Ciência Política e Relações Internacionais e investigador em sede de programa de doutoramento em Estudos Africanos, em Lisboa. É autor dos romances «O Carrossel de Lúcifer» (2008), publicado em Portugal pela Bertrand Editora, e «A Cidade dos Sete Mares» (2013), que permanece inédito. Está representado na antologia de contos «Catarse», com o texto «O Veneno de Sócrates», a publicar este ano no Brasil pela editora Deuses.




Copyright 2013 (c) - Todos os direitos reservados ao autor. Esta obra é parte da coletânea 15 Contos+ Volume II, Helena Frenzel Ed. e está licenciada sob uma Licença Creative Commons 2.5 Brasil. Você pode copiar, distribuir, exibir, executar, desde que seja dado crédito ao autor original. Você não pode fazer uso comercial desta obra. Você não pode criar obras derivadas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Caro(a) Leitor(a), lembramos-lhe que comentários são responsabilidade do(a) respectivo(a) comentarista e informamos que os mesmos serão respondidos no local de postagem. Adotamos esta política para melhor gerenciar informações. Grata pela compreensão, muito grata por seu comentário. Volte sempre, saudações!